19 de dezembro de 2022

A comparação entre ato no Nordestão e golpismo em frente ao quartel demonstra como uma Natal encaminha suas demandas, tratando movimentos sociais com polícia e crime continuado como luta por mais direitos

Autor: Redação

Famílias do MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas) foram ao Nordestão no último sábado (17) chamar atenção para a fome. Sim, por mais negacionista que alguém possa ser, os dados concretos são de que ela cresceu assustadoramente no Brasil nos últimos anos. Com alegados patriotas morando em frente ao quartel situado na avenida Hermes da Fonseca por quase 50 dias, as reações seletivas dos poderes e do chamado – de modo folclórico – plano palumbo de Natal, elite portadora de autoimagem europeia e defensora de visão de governo bolsonarista, são puro suco da marqueteira cidade do sol.

Após parca permanência dos membros do movimento social na loja do supermercado no Bairro de Capim Macio, a gritaria por polícia logo se estabeleceu. “Bandidos”, “vagabundos” e “comunistas” viraram lugares comuns no enquadramento dos que estavam ali presentes. O protesto durou algumas horas e logo eles deixaram o estabelecimento. O ato, que já aconteceu em outros anos também no período natalino, ocorreu em mais 10 estados. Parte da imprensa local alegou que foram exigidas 400 cestas básicas do Nordestão para sair do local. O ponto é demonstrado em tom de chantagem. Só que não há nota, entrevista, cartaz, fala de membro do MLB ou sequer fonte, ainda que anônima, apresentada pelos periódicos que fizeram tal afirmação. Em suma, a apuração, base de qualquer jornalismo, simplesmente passou bem distante. Só o discurso com a condenação moral e o tom sentencioso. Em menos de 24 horas a justiça determinou que os integrantes do MLB mantenham uma distância mínima de 500 metros do Nordestão. A comemoração – aberta ou velada – contra os “bandidos”, sintoma dos novos tempos do “faz o L” e não da desigualdade que escalou de forma cavalar no Brasil de Jair Bolsonaro, era indisfarçável.

Ora, alguém defensor da ordem, conservador ou que reprova tal tipo de protesto, de maneira estratégica e/ou normativa, tem todo o direito de argumentar em favor de seu ponto de vista. Democracias funcionam assim. A questão é que na prática a teoria que baliza é outra, pois não muito longe dali há um grupo de pessoas, com perfil racial e financeiro distintos, ocupando ilegalmente o espaço público e parte de uma das principais vias de Natal desde o final do mês de Outubro, sem quaisquer manifestação de reprovação minimamente parecida das que foram alvo o MLB. A rotulação é inteiramente diversa.

O MLB não furtou, não depredou ou coagiu o estabelecimento, clientes e funcionários do Nordestão. A aglomeração planejada era o cerne. Enquanto isso, bolsonaristas clamam de modo insofismável por algo que é considerado crime no Brasil e nas principais democracias do mundo – uma intervenção para que o vencedor das eleições de 2022 não assuma. Veja, caro leitor, ao contrário da exigência de cestas básicas narrada acima, não há aqui suposição carente de apuração. Isto é dito abertamente em cartazes, carros de som e nas redes dos alojados na porta do quartel. Ou seja, não há a denúncia de pessoas passando fome, de direitos sendo tolhidos. O clamor é para que os militares do outro lado do muro deem um golpe contra a democracia. Isto é, há ali uma conduta ilícita em curso para todo mundo ver e acompanhar. Pela invasão do capitólio nos EUA, país em que os palumbistas gostam de passar férias, postar fotos orgulhosas no instagram ao estilo do “olha, eu venci na vida” e elogiar pela modernidade, mais de 900 já foram condenados e mais de 200 cumprem pena encarcerados. Na Alemanha, pelo simples planejamento de um golpe, 25, inclusive empresários e parlamentares, foram presos por terrorismo.

Só que o tom do plano palumbo agora é outro. Seus colunistas, seus representantes, suas rodas de café sempre movimentadas alegam que não tem como dizer que os ditos patriotas, nunca nomeados de maneira depreciativa, estão pedindo abertamente o cometimento de um crime, incitando as forças armadas. A ação é tratada como protesto legítimo. Vira dever, portanto, do estado de direito proteger a obstrução de calçadas, a ocupação de patrimônio público, o fechamento de parte da via e o incômodo até a madrugada com barulho de toda uma vizinhança. A justiça simplesmente não age. O poder público municipal, pelo contrário, oferece organização do trânsito e fechamento integral da via quando os defensores da implementação de uma ditadura no Brasil assim desejam. Para justificar o golpismo, a lei é esticada, até ser jogada no lixo, para resguardar a ação dos inconformados com a derrota de 2022. A prevaricação é generalizada.

Por tudo isto é falso dizer que há conservadores opinando. Se fosse verdade para o caso do Nordestão, os mesmos que concentram o direito à fala pública e a força de influenciar a incursão dos poderes constituídos teriam condenado a ação – falsamente – patriótica em frente ao 16 RI e cobrado o indiciamento dos seus envolvidos, já que impetram prática delituosa aos olhos do ordenamento jurídico brasileiro. É de tal modo que age quem é defensor da ordem e do patrimônio, público ou privado. O que há, porém, é a velha proteção do privilégio e a visão nada democrática, marcas registradas das elites da cidade. Ordem? Não. Só a ideia de que uma classe social em Natal pode tudo, inclusive impor o seu vandalismo físico e institucional.

Em suma, o que está desnudado é puro suco de uma Natal, em especial daquela que só aceita o poder do seu voto, da sua lei e criminaliza tudo que se distancie da centralidade do próprio umbigo. No que depender dessa parcela, toda e qualquer reivindicação na cidade que passe pelos movimentos sociais será motivo de polícia e os criminosos golpistas poderão esperar quantas 72 horas quiserem. No que depender deles, os saudosos da ditadura ficarão em frente ao quartel o tempo que desejarem. E o máximo que farão é doar recursos para banheiros químicos e alimentação.

Tudo para os seus combatentes ainda será pouco. Afinal, eles são os soldados da velha Natal – daquela que só pode mudar se caminhar para funcionar assim segregada, atravessada por exclusivismos e dotada da cisão entre supercidadãos e gente de segunda classe.