31 de maio de 2023

O inverno do nosso descontentamento

Autor: Redação

Por Wagner Artur Cabral - Em um de seus livros de ensaios, o autor norteamericano Kurt Vonnegut registrou que sabemos tão pouco da vida que sequer conseguimos discernir as boas notícias das más. Para além de uma realidade metafísica – dada a informação limitada que temos do mundo, característica do não onisciente – às vezes avaliamos mal fatos ou pessoas, inclusive sendo refutados pelo maior dos professores, o tempo. Convém exercitar o saudável ceticismo e desatrelar o raciocínio da urgência midiática anabolizadas pelas redes sociais. Se é bom ou ruim, não sei, a ver. Me pergunta mais tarde.

A incerteza pode inclusive dar ensejo a ambivalência e confusão, com pontos de vista conflitantes, que podem muito bem ocupar o mesmo lugar no espaço das ideias. Logo na primeira linha de sua peça Ricardo III, Shakespeare contextualiza o drama quando o protagonista que intitula a obra declara que “o inverno do nosso descontentamento é transformado em glorioso verão pelo sol de York”. Quando Ricardo retrata o cenário de mudança, o então Duque de Gloucester traz otimismo no texto e venalidade nas entrelinhas: a alegria tende a desmobilizar insatisfações e prejudicar ímpetos ambiciosos e traiçoeiros como os do protagonista. Está nesse enunciado, portanto, um diagnóstico e uma missão, fazer do futuro um proveitoso passado, para seus fins particulares. Isso tudo só na primeira linha, na qual o bardo fez caber poesia e premonição.

Está exemplificada uma relação complexa entre passada e futuro, em que as alvíssaras dão rápido lugar ao aziago e resta sobre o presente o peso da indefinição. Ou não. A Inglaterra atravessou um inverno rigoroso entre 1975 e 1976, que por uma conjunção de pressões econômicas e políticas findou apelidado justamente de “inverno do descontentamento”, marcado por greves trabalhistas e instabilidades sociais. Em vez de relato de um passado superado, tratar-se-ia de um registro do presente, um disco arranhado de insatisfação difícil de vencer, até que se venceu. O tempo, sempre ele, passou, e o mundo mudou. Desde então esse inverno está no passado, ainda que analistas ingleses sazonalmente o posicionem como futuro.

O contexto brasileiro segue rimas no mesmo mote: a transição de um tempo triste para uma nova alegria, com eventuais críticas sobre onde exatamente estamos, e se isso que aqui chamamos alegria não seria, em outras épocas, terrível tristeza. Analistas políticos esmerilham colunas e editoriais traduzindo aos demais analistas, e quem sabe até à população em geral, sua leitura de tabuleiro e perspectivas para próximos lances, na taquicardia ansiosa das redes sociais. A tônica é a da apreensão. Vitórias, sempre modestas e contidas. Incertezas e contradições prejudicam a confiança. Aqueles tempos piores em que estávamos, alguns já apostam que para lá não tardaremos a voltar. Talvez tenham razão. Me pergunta mais tarde.

Uma hipótese teimosa: e se o desvelar de conflitos não representar catástrofe, mas sim o natural diálogo institucional numa sociedade democrática fraturada. Que misture em sua agenda temas concretos e factoides de não-assuntos, aqueles que ainda que mobilizem as atenções anabolizadas por algoritmos obscuros, não traduzam qualquer substância real. E se não for prejuízo, mas benefício, ter a sociedade discutindo (vigorosamente, até) seu planejamento energético, o papel da sua indústria, a responsabilidade de se falar mentiras e quais os limites do orçamento? Me pergunto se alguns de nós se iludiram numa calma que não só seria irreal, dado o passado recente, como enganadora, postergando disputas necessárias e saudáveis numa democracia que não presume ser a paz sinônimo de liberdade, e reconhece nela também indícios de opressão.

Talvez seja muito pouca a promessa da nossa primavera, a lembrança do inverno dos nossos descontentamentos como sendo ponto fixo a se distanciar, dia a dia, e entre conflitos e atropelos, caminhando em busca de um sol que não se poderá abraçar.

 

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