16 de março de 2025

Mães acusadas de maus-tratos contra filhas adotivas no RN são inocentadas

Autor: Daniel Menezes

Do Saiba Mais

As professoras Vândiner Ribeiro e Ivana Teixeira nunca esquecerão o dia 2 de fevereiro de 2024. Naquela sexta-feira, há pouco mais de um ano, as duas foram presas preventivamente sob a acusação de cometerem maus-tratos, tortura e violência psicológica contra uma criança e uma adolescente que haviam adotado em 2021. As mães ficaram detidas durante pouco mais de três semanas, inicialmente no Centro de Detenção Provisória Feminino de Parnamirim, mas foram transferidas em seguida para a Penitenciária João Chaves, na zona Norte de Natal. Depois de terem a vida revirada pelo avesso, enfrentarem meses de exposição midiática e serem submetidas a um verdadeiro assassinato de reputação, elas renasceram com a sentença de absolvição, proferida no dia 7 de novembro de 2024.

Naturais de Minas Gerais, casadas há 12 anos, elas moram no Rio Grande do Norte desde 2016. Vândiner é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A companheira dela, Ivana, é servidora da Universidade Estadual do RN (UERN). A prisão preventiva das duas foi decretada à época pela Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Parnamirim, com o parecer favorável do Ministério Público.

Quando foram adotadas pelo casal, em outubro de 2021, as meninas tinham 9 e 12 anos de idade. Vândiner e Ivana foram buscá-las em Blumenau, Santa Catarina. As irmãs ficaram com as mães adotivas até o dia 26 de janeiro de 2024, quando foram retiradas do lar após o registro de um boletim de ocorrência, feito por uma cuidadora, por supostos maus-tratos contra a criança e a adolescente.

As mulheres prestaram depoimento, negaram as acusações, mas não adiantou. Depois de serem retiradas do convívio familiar, as meninas ficaram sob os cuidados do Estado, passando a viver na Casa do Adolescente, em Parnamirim. Uma semana depois, as mães adotivas foram presas.

Os processos

Vândiner e Ivana enfrentaram dois processos gerados após a denúncia da cuidadora e a prisão preventiva, um criminal e outro cível. Esse último poderia levar à destituição do poder familiar em relação às filhas adotivas, que foram para um abrigo após serem retiradas do convívio com as mães.

Após serem absolvidas de todas as acusações, elas foram consultadas sobre a possibilidade do retorno das meninas para casa, mas explicaram que seria impossível devido à situação vivida e ao fato de que foram as mentiras das próprias filhas que as levaram à prisão. A convivência, diante disso, se tornou inviável.

Vândiner relatou que, desde o início, ficou evidente que as meninas não queriam ser adotadas. Ela e sua companheira, no entanto, acreditavam que o amor delas pelas filhas terminaria conquistando as duas, o que se mostrou uma esperança frustrada.

“Como a gente ia conviver com duas pessoas que nos levaram pra cadeia, que fizeram a gente viver toda sorte de abusos na mídia, na prisão e que tentaram destruir nossas vidas? Elas são duas adolescentes, mas duas adolescentes que agiram de má-fé, sabendo o que estavam fazendo o tempo todo”, declarou a professora da UFRN.

Casadas há 12 anos e morando desde 2016 em Natal, as mineiras Vândiner e Ivana foram injustamente acusadas de maus-tratos contra as duas filhas adotivas. Foto: Arquivo Pessoal

A partir da resposta do casal sobre a impossibilidade do retorno das meninas à casa delas, houve a destituição do poder familiar, mas, como a adoção é irrevogável, as duas continuam sendo legalmente filhas de Vândiner e Ivana.

A partir desse momento, as meninas ficaram sob a tutela do Estado. Inicialmente, as duas permaneceram em Parnamirim, mas em janeiro desse ano, não se sabe como, fugiram para Santa Catarina.

“Não tivemos notícia do que aconteceu, como elas conseguiram chegar lá, mas elas estão na casa do pai biológico, que perdeu o poder familiar quando elas entraram para adoção”, contaram as mães adotivas.

O fim do pesadelo

A absolvição representou, além do alívio citado pelas mães, a confirmação do fim de um pesadelo. Vândiner contou que, no dia do julgamento, a juíza do caso disse que poderia proferir a sentença apenas oral, mas fez questão de fazer por escrito porque as duas, acusadas injustamente, mereciam que a reparação ficasse registrada.

A juíza refutou a acusação do crime de tortura, enfatizando na sentença que “verificou-se, no curso do processo, que não restou evidenciado nos autos, de forma alguma, os requisitos necessários à configuração da conduta delitiva, pois, ao contrário, todo o acervo probatório colacionado demonstra, com muita clareza e segurança, o cuidado, o zelo e a atenção dispensados pelas acusadas às filhas”.

Em sua decisão, a juíza também atestou que Vândiner e Ivana fizeram “diversas tentativas de fortalecimento dos vínculos entre mães e filhas durante todo o período de convivência”, além de enfatizar que, pelo que se apurou nos autos, a adoção era “um dos projetos de vida das denunciadas”.

A juíza registrou, ainda, em outro trecho da sentença, que as “provas extensamente produzidas durante a instrução deste processo” demonstraram de forma “clara, coerente e em harmonia com a prova testemunhal e documental” que “as acusadas cumpriram, devidamente, os deveres de sustento, guarda e educação das filhas, bem como que durante todo o tempo de convívio proporcionaram um ambiente familiar de amor, diálogo, compreensão, acolhimento, respeito e valorização”.

Na sentença, a juíza também pontua que as mães fizeram tudo isso “mesmo diante dos desafios diários relativos às questões de dificuldade no cumprimento de regras e atos de indisciplina” por parte das duas meninas.

A sentença também destaca que as testemunhas que participavam do ambiente familiar e escolar, além de vários moradores do condomínio, “nunca observaram qualquer indício de que a criança e a adolescente eram maltratadas ou de que sofressem restrição alimentar, de convívio social ou possíveis violações de direitos, inclusive no ambiente escolar”.

Ivana e Vândiner disseram que a absolvição foi um “alívio”, mas que não precisavam passar pelo que vivenciaram se o processo tivesse sido bem conduzido. Foto: Arquivo Pessoal

“Ressalto, por fim, que a instrução cuidadosa, atenta e pacientemente realizada ao longo deste processo, deixou claro a esta magistrada que as acusadas, em momento algum, violaram, de qualquer forma, os direitos das adolescentes em tela, tratando-se, em verdade, de duas mulheres, educadoras por profissão, que se propuseram a adotar uma criança e uma adolescente em idade já avançada em relação ao perfil mais procurado para adoção, pretas, oriundas de outro Estado da Federação, assumindo o desafio de construírem um vínculo sólido e comprometido de amor e de cuidado, capazes de propiciarem o sentimento de pertencimento e de promoverem socialmente as infantes e que, efetivamente, empreenderam tempo, dedicação, esforços pessoais e recursos financeiros para o alcance desse objetivo”, escreveu a juíza.

A magistrada considerou, ainda, que as mães tiveram “suas vidas expostas” e foram “publicamente julgadas e previamente condenadas em decorrência de ações imaturas e inconsequentes de uma criança (à época) e uma adolescente, que buscavam, ao fim e ao cabo, voltarem a viver à margem das regras inerentes a uma convivência familiar, como, infelizmente, estiveram na maior parte de suas vidas, vítimas que também foram, ao que tudo indica, do padrão comportamental de sua família de origem e em relação à qual aparentam manter lealdade”.

Injustiça e indignação

Quando lembram de tudo o que vivenciaram, desde a acusação, passando pela prisão e a esperada absolvição, Vândiner e Ivana se sentem aliviadas com o desfecho desse processo que foi tão doloroso para elas, mas indignação diante da injustiça que sofreram.

“A gente não precisava passar pelo que a gente passou se esse processo tivesse sido conduzido de outra forma”, disse, emocionada, Vândiner, em entrevista exclusiva à Agência Saiba Mais.

Para ela, apesar do alívio da absolvição, a sensação ainda é que a justiça não foi nem nunca será feita na sua integralidade.

“Esse sentimento de injustiça é muito forte pra mim. Eu tive a minha imagem destruída pela mídia, meu currículo colocado na internet e as coisas que eu faço com tanto cuidado e tanto carinho destruídas. Eu não sei se eu vou conseguir recuperar isso um dia”, desabafou.

O sentimento de injustiça é partilhado por Ivana, para quem a absolvição significa apenas uma “justiça legal”, mas o processo em si, principalmente o inquérito policial, não foi conduzido como deveria.

“Eu não acho que o inquérito foi feito da maneira que devia ser, com cuidado, atenção aos detalhes, oitiva de pessoas de um lado e do outro e apuração de todas as provas. As informações foram vazadas com muita rapidez. As pessoas estavam muito ávidas para nos condenar mesmo e a coisa foi muito corrida”, ponderou.

Ivana afirmou que o caso deveria ter sido tratado com sigilo de Justiça desde o início, como determina a lei, mas, em vez disso, houve vazamento de informações falsas para a imprensa, que em sua grande maioria cobriu o caso com sensacionalismo.

“Vazaram que as meninas eram escravizadas. Isso nem foi tratado no processo. Então, como essa informação chegou [à imprensa]? Quem vazou? O processo é sigiloso, mas nós tivemos fotos no presídio expostas na mídia. Tivemos até que repetir a entrada na delegacia porque a filmagem não tinha ficado boa. Foi ridículo”, disse Ivana, em tom de indignação.

Delegada não ouviu testemunhas de defesa

Elas lembraram que a delegada Ana Gadelha, titular da Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente de Parnamirim, deu entrevista à época chorando, dizendo que as meninas passavam fome, mas que, finalmente, estavam livres. “Ela não tinha elementos para afirmar isso”, disse Vândiner.

Na época do caso, a delegada afirmou, com base no depoimento de 19 testemunhas de acusação, que as supostas agressões contra as duas meninas haviam começado a ocorrer um ano após a adoção.

De acordo, ainda, com a delegada, as duas irmãs contaram que sofriam agressões físicas e psicológicas quase diariamente, além de sofrerem ameaças para não contarem o que estava acontecendo.

“A violência psicológica também acontecia no âmbito da obrigatoriedade de se realizar todos os serviços domésticos da casa e serviços de jardinagem. Não cabe a uma criança ficar preocupada com as coletas de lixo, mas elas eram responsáveis por coletar o lixo da residência”, declarou, à época, a delegada.

As mães adotivas disseram que a delegada só ouviu pessoas que não as conheciam, não eram do convívio pessoal nem profissional delas. Elas não sabem dizer quem indicou essas testemunhas, mas dizem que certamente “saiu do condomínio” onde moram em Parnamirim.

Acusações baseadas em fofocas

“As acusações que sofremos e que provocaram a nossa prisão foram baseadas em fofocas. As provas contundentes da delegada eram baseadas em fofocas. As testemunhas de acusação não conheciam as meninas nem nos conheciam, só disseram coisas que ouviram dizer por outras pessoas”, disse Ivana.

Uma das testemunhas de acusação, a professora particular dos filhos de uma vizinha de Ivana e Vândiner, disse à polícia que ouviu as duas meninas chorarem e gritarem, mas o depoimento deixou várias lacunas que indicavam serem falsas as afirmações.

A mulher disse, por exemplo, que as duas meninas faltavam muito à escola porque apanhavam e não podiam ir às aulas, mas isso foi desmentido pela diretora do colégio particular onde as duas estudavam, bem como pelo histórico escolar anexado aos autos, que atestou uma frequência escolar acima de 99%.

A diretora atestou que as duas eram extremamente bem cuidadas e que não faltavam às aulas. As mães relataram que elas chegaram com muitas dificuldades em todas as áreas de conhecimento, em especial de leitura e escrita, mas, com o tempo, suas notas estavam sempre entre as maiores ou dentro da média.

Para chegar a esse resultado, segundo as mães das meninas, não foi do dia para a noite. Elas tinham acompanhamento diário, tanto para fazer o “dever de casa” quanto na escola, conforme consta em diversas conversas com a direção da escola via WhatsApp, que foram acostadas aos autos.

As mentiras não pararam por aí. Houve quem dissesse, segundo Vândiner, que as meninas iam de moletom para a escola todos os dias para esconder as marcas das supostas agressões.

A diretora, mais uma vez, desmentiu afirmando que a camisa da farda da escola era de manga curta. As mães confirmaram que, nas aulas de educação física, bem como em outras atividades físicas que elas participavam na área do condomínio, frequentemente as meninas usavam roupas como top, camiseta, short e biquíni.

Hostilizadas pelo posicionamento político e homofobia

Vândiner afirmou que ela e sua companheira sempre foram hostilizadas no condomínio. Elas atribuem isso tanto à homofobia quanto ao posicionamento político delas, uma vez que são assumidamente militantes de esquerda.

“A gente sempre foi muito hostilizada no condomínio, exatamente por sermos duas mulheres, porque tem uma questão de gênero muito forte, mas também pela questão política. Já teve gente fazendo arminha, sinal da cruz e tacando pedra na nossa porta”, relatou.

A hostilidade continua acontecendo mesmo depois da absolvição pelas acusações injustas. Dia desses, segundo contou Vândiner, a mãe de um adolescente fez um escândalo ao buscar o rapaz na casa delas.

O jovem era amigo de umas adolescentes, filhas de amigos de Vândiner e Ivana, que foram visitá-las. A mãe foi buscá-lo e vociferou que o rapaz não poderia estar lá de jeito nenhum, sem dizer o motivo da proibição. Para o casal, a marca da homofobia ficou muito evidente.

Cuidadora era uma “pessoa manipulável”

A cuidadora contratada para ficar com as duas meninas, enquanto as mães adotivas faziam uma viagem ao exterior, disse em depoimento que passou fome durante o período em que cuidou delas, mas as mães conseguiram comprovar no julgamento que essa foi só uma das muitas mentiras contadas pela babá.

Vândiner disse que as filhas viram na cuidadora “uma pessoa manipulável”, contaram várias mentiras a ela e a mulher reproduziu o relato das duas meninas, mesmo não tendo testemunhado nenhuma agressão.

A professora confidenciou que as duas meninas, desde que foram adotadas, sempre mentiram para ela e sua companheira e que elas usaram essa tática para manipular a cuidadora.

“A mais velha, por exemplo, mentiu para o Conselho de Tutelar. Uma vez ela cometeu um furto no Supermercado Queiroz e, quando a pegaram, a polícia queria trazê-la em casa, mas ela deu quatro endereços diferentes. Então a mentira era recorrente para as duas”, relatou, acrescentando que elas se envolveram em outras situações de furto, tanto em casa quanto na rua.

Motivação homofóbica

Para Vândiner e Ivana, a homofobia foi uma das motivações que levou a cuidadora a fazer a denúncia que culminou com a prisão delas.

Foram as próprias filhas, segundo Vândiner, que contaram que a cuidadora havia falado que “Deus não aceita duas mulheres”, que ela e sua companheira “estavam erradas” e que “isso não é permitido”.

A mesma fala homofóbica foi ouvida por outra adolescente que relatou o conteúdo à mãe, que por sua vez testemunhou no processo a favor de Vândiner e Ivana.

Ivana e Vândiner foram hostilizadas diversas vezes no condomínio onde moram e acreditam que a homofobia foi uma das motivações da falsa acusação contra elas. Foto: Arquivo pessoal

Mas essa não foi a única motivação da mulher que condenava a união entre Vândiner e Ivana, mas não via problema em mentir, mesmo que isso significasse destruir a vida de duas pessoas inocentes.

“Quando a gente estava voltando da viagem, ela pediu que a gente pagasse mais a ela. Isso também está nos autos do processo. A forma que ela colocou foi muito agressiva, pedindo mais dinheiro”, contou Vândiner.

Voltar para a prisão não era uma opção

Ivana e Vândiner tinham tomado uma decisão drástica: não voltariam para a prisão de forma alguma.

“A gente já tinha programado como tirar a nossa vida, porque não aceitaríamos viver uma injustiça dessa de forma alguma”, revelou.

Vândiner disse que elas já tinham contado à família e aos amigos sobre a decisão. Outra coisa que haviam acordado era que não partiriam sem se despedirem das pessoas que estiveram ao lado delas no momento mais difícil de suas vidas.

“Nós tivemos um apoio gigante das pessoas aqui da UFRN e da UERN, de amigos e amigas de Belo Horizonte, lá da UFMG e do MST. Então, não dava pra gente ir embora sem se despedir desse povo”, detalhou. O plano, felizmente, não se concretizou.

Ivana disse que a decisão não significava que não gostassem da vida ou que não fossem fortes.

“A gente não estava disposta, politicamente, a viver uma verdade inventada por um grupo de pessoas homofóbicas, antidemocráticas e fascistas, que não toleram pessoas que vivem de um jeito diferente do que elas consideram correto”, protestou.

Elas não tolerariam viver uma “verdade inventada”, ampliada pela maneira espetacularizada como parte da imprensa cobriu o caso, pautando-se apenas pelas informações vazadas, sem o devido cuidado com a checagem dos fatos.

As marcas da injustiça

Quando se é vítima de uma injustiça, isso deixa marcas que às vezes carregamos pela vida inteira. Lidar com os efeitos desse sentimento profundo de revolta, sofrimento e tristeza é doloroso, mas, como disse Ivana, “o que não nos matou, nos deixou indestrutíveis”.

A adoção, para Ivana e Vandinha, como carinhosamente ela é chamada pela companheira, “é um ato político”. Por isso, essa tristeza pelo que aconteceu toca em um lugar ainda mais profundo para elas.

“Tem uma parte de mim que sente uma tristeza muito profunda por tudo que nós vivemos, porque a gente queria que tivesse dado certo. Ninguém adota duas meninas para dar errado, é uma loucura pensar que você vai buscar duas adolescentes lá em Blumenau para não dar certo. Eu não queria que a gente tivesse vivido uma coisa assim, queria que tivesse dado certo, sinto muito por não ter dado certo”, lamentou-se Ivana.

Vândiner acredita que elas tiveram “uma falta de sorte gigante”. Quando se decidiram pela adoção tardia de duas meninas negras, o objetivo delas não era só “aumentar a família”, mas “contribuir com a existência de duas pessoas que não teriam as chances que a gente poderia oportunizar para elas”, explicou.

“A gente queria ter a possibilidade de criar duas meninas fortes para viver nessa sociedade machista, mas infelizmente não deu certo”, completou Vândiner.

A professora contou que trabalhou a vida inteira com movimentos sociais, defendendo os direitos humanos e lutando pelas questões de gênero, raça e etnia. O que aconteceu, para ela, foi ainda mais difícil de assimilar, porque a confrontou com suas próprias convicções.

O que fazer quando aquilo que defendemos, as causas pelas quais nos comprometemos, as bandeiras que levantamos, se viram contra nós? Para muitos, a resposta seria abandonar a luta, mas essa, assim como a volta para prisão, nunca foi uma opção para Vândiner e Ivana.

Elas decidiram que a melhor resposta que podem dar à sociedade, mesmo àqueles que tentaram destruir suas vidas, é resistir.

“Eu acho que existe uma força em fazer o bem. Então, a gente vai seguir nessa caminhada aí, tentando fazer o bem como a gente sempre fez”, disse, após uma pausa para chorar, a professora Vândiner.

Renascer e resistir

Depois de ouvirem a sentença da juíza as absolvendo, no dia 7 de novembro de 2024, Ivana e Vândiner disseram que renasceram.

No dia seguinte, às 8h, Ivana foi trabalhar. Nesse horário, ela tinha uma reunião na UERN, mas admitiu que não voltou “ao normal”, porque, nas palavras dela, “ninguém se recupera” totalmente do que elas viveram.

“Eu não me recuperei 100% ainda, acho que isso vai levar um tempo, mas eu posso dizer que, em relação ao que eu sinto, é uma mistura, não dá para definir um sentimento, eu não consigo nomear o que eu sinto. É uma mistura de sentimentos, varia dependendo do dia. Naquele momento da sentença, por exemplo, foi um alívio grande demais, porque a gente não queria morrer, a gente não queria ser presa, ainda mais por uma coisa que a gente não fez”, extravasou.

Apesar do sofrimento, Ivana não quer ficar “arrastando corrente”, porque, afinal de contas, a vida segue.

“A gente sempre pensou que éramos uma família antes e continuamos sendo uma família agora. Eu e minha esposa, a gente se ama muito. O nosso amor sempre foi muito poderoso. Ele se fortaleceu muito ao longo desse processo. Então, a gente se reencontrou, a gente se fortaleceu e a gente renasce, nas lembranças, na memória, nas coisas que a gente viveu”, derramou-se.

Vândiner revelou que elas tentarão transformar a dor em combustível para escreverem sobre a experiência traumática que viveram, para dar uma resposta à sociedade, mas também para alertar outras pessoas sobre os perigos do que “a mídia pode fazer com a gente”.

“Essas pessoas precisam entender que podem ter apoio e, se alguém precisar, a gente estará aqui para alertar que ninguém precisa passar pelas mesmas coisas que nós passamos nem terem a vida destruída por uma mentira. Então, acho que documentar isso é uma estratégia de resistência. Esse vai ser nosso ato de resistência”, completou.

O Caso Escola Base

As injustiças, a exposição pública e o sensacionalismo midiático em torno do caso envolvendo Vândiner e Ivana, previamente condenadas, como disse a juíza em sua sentença, no tribunal da opinião pública, se assemelha a um dos episódios mais lamentáveis da história do jornalismo brasileiro.

O caso aconteceu há mais de 30 anos, no dia 28 de março de 1994, quando os donos da Escola Base, na região central de São Paulo (SP), foram injustamente acusados de abuso sexual contra as crianças, tiveram suas vidas devassadas e sofreram danos irreparáveis à sua reputação devido à cobertura sensacionalista da imprensa e à conduta da polícia.

Fachada da Escola Base, na região central de São Paulo. Foto: Veja / Reprodução.

Os donos da escola, Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, além da professora e um motorista, foram acusados de abusarem sexualmente de crianças de quatro anos que estudavam na escola.

Os quatro também foram falsamente acusados de aproveitavam o horário escolar para levar os estudantes para motéis, onde seriam filmados e fotografados nus.

Em consequência da revolta da opinião pública, a escola foi obrigada a encerrar suas atividades logo em seguida.

Tudo teve início quando duas mães, desconfiadas do que consideraram ser comportamentos estranhos dos filhos que estudavam na Escola Base, procuraram a polícia para prestar queixa.

As mães acusaram os donos da escola, a professora e o motorista de fazerem orgias com as crianças no apartamento dos pais de um dos alunos.

O delegado responsável pela investigação obteve um mandado de busca e apreensão ao apartamento onde, supostamente, as crianças eram abusadas, mas nada foi encontrado no local.

As mães, revoltadas, decidiram procurar a imprensa para denunciar o caso, que ganho repercussão imediata e mudou para sempre a vida dos acusados.

O laudo do Instituto Médico Legal (IML), pedido pelo delegado, deu inconclusivo, mas dizia que as crianças apresentavam lesões que podiam ser de atos sexuais. O delegado, então, deu declarações dúbias à imprensa.

Os acusados, mesmo antes de qualquer julgamento, já haviam sido condenados aos olhos da opinião pública. A imprensa repercutia o caso diariamente com uma série de notícias sem nenhuma veracidade.

Manchete do tabloide sensacionalista “Notícias Populares”. Foto: Reprodução

O tabloide sensacionalistas “Notícias Populares”, apelidado à época de “espreme que sai sangue”, chegou a dar a manchete: “Kombi era motel na escolinha do sexo”, demonstrando como o caso foi espetacularizado pela imprensa da época.

O delegado, com o tempo, foi afastado das investigações. As provas da inocência dos acusados começaram a aparecer. Quando os advogados dos donos da escola tiveram acesso ao laudo do IML, viram que o documento era inconclusivo.

A própria mãe de uma das supostas vítimas admitiu que o filho sofria de constipação intestinal, uma das possíveis explicações para as lesões apontadas pelo laudo. Depois surgiram depoimentos de outras pessoas em defesa dos acusados.

Parede da casa dos donos da escola foi pichada após falsa denuncia em 1994. Foto: Reprodução

Três meses depois, em junho, os suspeitos foram inocentados. O estrago, no entanto, já estava feito. Os acusados tiveram suas vidas arruinadas financeira e psicologicamente.

A imprensa, que se encharcou na lama do sensacionalismo, não informou que os acusados haviam sido inocentados, dizendo apenas que as investigações foram encerradas por falta de provas, dando margem à dupla interpretação.

Em 2022, depois de 28 anos do caso, o ex-repórter da Rede Globo, Valmir Salaro, autor da primeira reportagem sobre o episódio, lançou o documentário “Escola Base – Um Repórter Enfrenta o Passado”. Era, nas palavras dele, um pedido de desculpas, que veio muito tardiamente.

Voltando ao caso da falsa acusação contra Vândiner e Ivana, a pergunta que não quer calar é: quando os veículos de imprensa que promoveram um circo midiático às custas da imagem do casal vão fazer o seu mea-culpa?

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